sexta-feira, 31 de maio de 2013

Preguiças por Helder Macedo


 
 
 Quando eu tinha 11 ou 12 anos (ainda estava em Lourenço Marques) ofereceram-me um livro intitulado História de Portugal para os Meninos Preguiçosos Fiquei ofendidíssimo. Eu preguiçoso?! Praia de manhã, matine no Scala, futebol ao fim da tarde, uns versinhos precoces às escondidas, o pôr-do-sol na baía… O quê queriam ainda mais?
O autor era um notável talento desperdiçado, como vim a perceber tempo depois em Lisboa. Ele a fazer uns preguiçosos filmes publicitários: “Ó Isabel olha o relógio!” (mas a boazona da Isabel entrou sem receio na piscina porque o relógio era à prova de água). Por essas e por outras tornou-se no que hoje em dia se chamaria uma celebridade. Conhecido por ser conhecido. Contavam-se histórias a seu respeito, algumas provavelmente exageradas, mas nem por isso menos reveladoras. Por exemplo que um dia perseguiu de quarto em quarto, com desnudada urgência em riste uma virtuosa criadita que se atirou da janela e ficou estatelada no saguão. Ao que ele, debruçando-se, teria comentado: “Caíste minha pomba, caíste pensavas que lá por seres virgem podias voar.”Não deve ser verdade, mas a moral da história é o que importa aqui: a virgindade não dá asas.
Vem isto a propósito desta recente voga de simplificações dos Lusíadas para meninos e não tão meninos, por ventura nem sequer preguiçosos.
Que me fez pensar nos malefícios da virgindade. Sou todo a favor de facilitar acessos, tanto assim que aceitei participar, há coisa de sete anos, nos chamados Grandes Portugueses e até arranquei para Camões o …quinto lugar. Também acho perfeitamente respeitável que Gonçalo M. Tavares tenha pedido boleia ao James Joyce (que levou décadas a dessacralizar a Odisseia numa contemporaneidade irlandesa) para mais prontamente dessacralizar. Os Lusíadas na sua contemporaneidade portuguesa. E sobretudo achei ótimo que em 1972, em Moçambique e plena Guerra colonial, o pintor António Quadros, aliás o poeta João Pedro Grabato Dias, aliás Frey Ioannes Garabatus, o camoniano pseudo-autor das Qvybyrycas, tenha usado os Lusíadas para transformar a celebração épica do império português numa representação irónica do fim dos impérios. Com uma não menos irónica introdução erudita de Jorge de Sena e uma salutar epígrafe didáctica: “Cada um faz a homenagem que pode”. Porém acho péssimos que andem por aí a pedir boleia ao Fernando Pessoa para ensinar Camões nos liceus e universidades, como já disse e aproveito para dizer outra vez.
Mas sim é verdade, cada um faz a homenagem que pode. E também só se pode ensinar o que se sabe. O problema é mesmo esse. Quando se confunde acessibilidade com banalização. É em todo o caso sintomático de um salutar desejo de trazer novos leitores para os Lusíadas que duas das nossas mais ubíquas personalidades culturais tenham recentemente produzido interpretações didácticas do poema. Refiro-me a Os Lusíadas para gente nova, de Vasco Graça Moura (Gradiva, 2012), e à Versão de Os Lusíadas por José Luís Peixoto (em publicação pela revista Visão).
 
 
Vasco Graça Moura propõe à” gente nova” uns Lusíadas em que incorpora estrofes total ou parcialmente suas no texto de Camões, para desse modo o resumir, ou comentá-lo, ou torná-lo menos obscuro. Também omite passagens do poema que seriam retrospectivamente desconfortáveis, por exemplo os incentivos à invasão do Norte de África que como sabemos e então não se podia saber, quando implementada resultou na morte de Dom Sebastião e na anexação de Portugal à Espanha. Nas mãos de alguém menos hábil, justapor versos seus aos versos de Camões seria um exercício megalómano de resultados potencialmente grotescos, Mas Vasco Graça Moura é, por um lado, um mestre do pastiche poético e, por outro, um conhecedor profundo da poesia de Camões. De modo que, se a gente nova achar mais fácil ler estes partilhados Lusíadas, antes do que nada. O livro terá cumprido o seu propósito. O mesmo não se pode dizer da Versão de José Luís Peixoto.
Enquanto Vasco Graça Moura é consensualmente reconhecido como uma personalidade representativa do establishment cultural português, José Luís Peixoto, várias décadas mais novo, é um festejado romancista que tem sido associado a uma imagem de dissidência populista. Teria portanto sido interessante encontrar por seu intermédio uns Lusíadas que saíssem das leituras escolares convencionais.
O que saiu foi um Camões mal ensinado e mal aprendido que resulta numa espécie de crónica de banalidades disfarçadas em preguiçosas pós-modernices de piscadela de olho ao leitor. Exemplo: o Concílio dos Deuses. Que começa assim: “Como numa reunião de condomínio ou num conselho de ministros, Júpiter lançou-se num longo discurso que trazia já preparado de casa. “ E que termina: “Sem apito, Júpiter apitou o final da partida. Sem martelo, pumba, declarou encerrada a reunião.”No fim do texto que vi na internet vinha um “GOSTO MUITO”            de uma senhora chamada Isabel (olha o relógio!) que se depreende que é professora porque acrescenta: “vou usar os seus Lusíadas nas aulas de Português”. E se calhar vai mesmo. Malefícios da virgindade. Com Os Lusíadas a saltarem da janela e a ficarem da janela e a ficarem estatelados no chão.
Helder Macedo, in JL de 15 a 28 de Maio de 2013

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