O autor era
um notável talento desperdiçado, como vim a perceber tempo depois em Lisboa.
Ele a fazer uns preguiçosos filmes publicitários: “Ó Isabel olha o relógio!”
(mas a boazona da Isabel entrou sem receio na piscina porque o relógio era à
prova de água). Por essas e por outras tornou-se no que hoje em dia se chamaria
uma celebridade. Conhecido por ser conhecido. Contavam-se histórias a seu
respeito, algumas provavelmente exageradas, mas nem por isso menos reveladoras.
Por exemplo que um dia perseguiu de quarto em quarto, com desnudada urgência em
riste uma virtuosa criadita que se atirou da janela e ficou estatelada no
saguão. Ao que ele, debruçando-se, teria comentado: “Caíste minha pomba, caíste
pensavas que lá por seres virgem podias voar.”Não deve ser verdade, mas a moral
da história é o que importa aqui: a virgindade não dá asas.
Vem isto a
propósito desta recente voga de simplificações dos Lusíadas para meninos e não
tão meninos, por ventura nem sequer preguiçosos.
Que me fez
pensar nos malefícios da virgindade. Sou todo a favor de facilitar acessos,
tanto assim que aceitei participar, há coisa de sete anos, nos chamados Grandes
Portugueses e até arranquei para Camões o …quinto lugar. Também acho
perfeitamente respeitável que Gonçalo M. Tavares tenha pedido boleia ao James
Joyce (que levou décadas a dessacralizar a Odisseia numa contemporaneidade
irlandesa) para mais prontamente dessacralizar. Os Lusíadas na sua contemporaneidade
portuguesa. E sobretudo achei ótimo que em 1972, em Moçambique e plena Guerra
colonial, o pintor António Quadros, aliás o poeta João Pedro Grabato Dias,
aliás Frey Ioannes Garabatus, o
camoniano pseudo-autor das Qvybyrycas, tenha usado os Lusíadas para transformar
a celebração épica do império português numa representação irónica do fim dos
impérios. Com uma não menos irónica introdução erudita de Jorge de Sena e uma
salutar epígrafe didáctica: “Cada um faz a homenagem que pode”. Porém acho
péssimos que andem por aí a pedir boleia ao Fernando Pessoa para ensinar Camões
nos liceus e universidades, como já disse e aproveito para dizer outra vez.
Mas sim é
verdade, cada um faz a homenagem que pode. E também só se pode ensinar o que se
sabe. O problema é mesmo esse. Quando se confunde acessibilidade com
banalização. É em todo o caso sintomático de um salutar desejo de trazer novos
leitores para os Lusíadas que duas das nossas mais ubíquas personalidades
culturais tenham recentemente produzido interpretações didácticas do poema.
Refiro-me a Os Lusíadas para gente nova, de Vasco Graça Moura (Gradiva, 2012),
e à Versão de Os Lusíadas por José Luís Peixoto (em publicação pela revista
Visão).
Vasco Graça
Moura propõe à” gente nova” uns Lusíadas em que incorpora estrofes total ou
parcialmente suas no texto de Camões, para desse modo o resumir, ou comentá-lo,
ou torná-lo menos obscuro. Também omite passagens do poema que seriam
retrospectivamente desconfortáveis, por exemplo os incentivos à invasão do
Norte de África que como sabemos e então não se podia saber, quando
implementada resultou na morte de Dom Sebastião e na anexação de Portugal à
Espanha. Nas mãos de alguém menos hábil, justapor versos seus aos versos de
Camões seria um exercício megalómano de resultados potencialmente grotescos,
Mas Vasco Graça Moura é, por um lado, um mestre do pastiche poético e, por
outro, um conhecedor profundo da poesia de Camões. De modo que, se a gente nova
achar mais fácil ler estes partilhados Lusíadas, antes do que nada. O livro
terá cumprido o seu propósito. O mesmo não se pode dizer da Versão de José Luís
Peixoto.
Enquanto
Vasco Graça Moura é consensualmente reconhecido como uma personalidade
representativa do establishment cultural português, José Luís Peixoto, várias
décadas mais novo, é um festejado romancista que tem sido associado a uma
imagem de dissidência populista. Teria portanto sido interessante encontrar por
seu intermédio uns Lusíadas que saíssem das leituras escolares convencionais.
O que saiu
foi um Camões mal ensinado e mal aprendido que resulta numa espécie de crónica
de banalidades disfarçadas em preguiçosas pós-modernices de piscadela de olho
ao leitor. Exemplo: o Concílio dos Deuses. Que começa assim: “Como numa reunião
de condomínio ou num conselho de ministros, Júpiter lançou-se num longo
discurso que trazia já preparado de casa. “ E que termina: “Sem apito, Júpiter
apitou o final da partida. Sem martelo, pumba, declarou encerrada a reunião.”No
fim do texto que vi na internet vinha um “GOSTO MUITO” de uma senhora chamada Isabel (olha o relógio!) que se
depreende que é professora porque acrescenta: “vou usar os seus Lusíadas nas
aulas de Português”. E se calhar vai mesmo. Malefícios da virgindade. Com Os
Lusíadas a saltarem da janela e a ficarem da janela e a ficarem estatelados no
chão.
Helder Macedo, in JL de 15 a 28 de Maio de 2013
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