Num momento em que a crise das Humanidades encontra as suas raízes na
«crise do conhecimento da língua materna, que condiciona a prática da leitura e
a compreensão dos textos literários, históricos, filosóficos etc.», torna-se
fundamental tirar as devidas ilações desta afirmação da autoria do Prof. Vítor
Aguiar e Silva. De facto, «todas as Humanidades se fundam no conhecimento e na
prática da língua e sobretudo na leitura e na interpretação de textos, em
particular de textos literários». Neste sentido, importa falar entre as grandes
reformas urgentes, a efectuar na educação: «melhorar, fortalecer e enriquecer o
conhecimento da língua portuguesa». Não se trata, porém, de uma proposta ao
lado de tantas outras, mas de uma prioridade fundamental, centrada não em
«tecnicismos logocráticos e abstrusos», mas no incentivo da leitura dos textos,
na prática da expressão oral e escrita, na interpretação e numa especialíssima
atenção aos textos literários de diferentes épocas e géneros. Não há nitidez de
espírito sem ideias claras e distintas, não há conhecimento sem o contacto com
os autores e os textos originais. A pobreza vocabular, a confusão nos argumentos,
a desordem na exposição, a indigência das ideias – tudo isso tem a ver com a
desatenção e a indiferença que atingem as Humanidades e a literatura. As
cabeças bem feitas, de que falava Montaigne, e Edgar Morin recorda, exigem
abertura de espírito, diálogo entre saberes, capacidade de conhecer e
compreender.
A língua portuguesa é vista ainda por Vítor Aguiar e Silva como «a mais
esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade. No
entanto, isso obriga-nos a especiais responsabilidades no bom domínio do
português e na sua defesa e protecção. Mas a responsabilidade essencial
centra-se na valorização da cultura e da ciência, como faces da mesma moeda.
Lembremo-nos de Pico della Mirandola, para quem as Humanidades iam do
conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao
espírito filosófico e científico. Nada pode ser estranho às Humanidades. E se
se nota, presentemente, descrença relativamente a essa opção, no ensino e na
escolha de uma profissão, a verdade é que não estamos a falar de um domínio
fechado e cabisbaixo, mas a procurar novas perspectivas, susceptíveis de abrir
novas oportunidades. Afinal, não podemos esquecer que a grave crise financeira
que vivemos deveu-se fundamentalmente à desvalorização da capacidade de criar e
de inovar, nas duas últimas décadas. Ora, se a cultura e um novo espírito,
capazes de acolher e aprofundar as Humanidades, entrarem na ordem do dia, isso
significará que se dará uma especial ênfase ao seguinte: «o discurso das
Humanidades tem de ser sempre (…) a defesa intransigente contra os dogmáticos,
os tiranos e os espoliadores da liberdade e da dignidade do homem, no plano das
ideias e dos valores, e no plano das práticas concretas». Veja-se, pois, que a
apologia das Humanidades nada tem a ver com uma referência datada ou
retrospectiva. Trata-se de um apelo ao universalismo do diálogo entre saberes.
No entanto, este momentoso problema não se limita às considerações teóricas
e abstractas que, sobre ele, pareceriam mais fáceis. O facto é que o valor da
língua e das Humanidades tem repercussões económicas e sociais. Num estudo
recente do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, as indústrias e os
serviços em que a língua portuguesa é um elemento chave representam 17% do
Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal. Com efeito, esse estudo sobre “O Valor
Económico da Língua”, encomendado pelo Instituto Camões a uma equipa de
investigadores daquela instituição revela que esse valor é superior ao que
normalmente é referido, por exemplo para a língua castelhana (15%), “em
resultado da maior terciarização da economia portuguesa em relação à espanhola.
De qualquer modo, podemos afirmar, sem grande margem de erro, que há uma
equivalência, devendo salientar-se que a língua constitui um elemento de
crescente importância quando falamos de criação económica. E isto é tanto mais
evidente, quanto é certo que os sectores criativos nas economias modernas têm
cada vez mais em consideração a língua e a cultura. A tudo isto não é alheio o
facto de o português ser a terceira língua europeia com maior projecção mundial
(a seguir ao inglês e ao espanhol) e de haver uma previsão de aumento muito
significativo de falantes na área do português. Aliás, só as principais línguas
da China e da Índia se podem comparar em número de falantes com as três línguas
europeias mais faladas, ainda que só estas tenham difusão universal.
Naturalmente, o que acabamos de dizer corresponde a uma crescente
responsabilidade para as economias da língua portuguesa, uma vez que se exige
uma maior qualidade nas aprendizagens e uma maior valorização da educação e da
formação. De facto, o que distingue uma sociedade desenvolvida duma sociedade
atrasada, nos dias de hoje, é a capacidade de aprender, e isso é especialmente
pertinente quando falamos de tudo quanto se relaciona com o uso da língua. No
fundo, falar de valor económico é referir o valor cultural – afirmando que a
língua é um factor social indispensável para a coesão, para a confiança e para
a auto-estima das sociedades.
Percebe-se que
o Prof. Aguiar e Silva no seu livro «As Humanidades, os Estudos Culturais, o
Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa» (Almedina, 2010), que
temos vindo a citar, insista na «elaboração das Humanidades», como «saberes
sistematizados que ensinem o homem a falar, a discorrer, a interpretar, a
argumentar, a ponderar os valores, a tomar decisões na esfera política, a
representar poética e simbolicamente as suas acções, as suas virtudes, as suas
misérias e os seus sonhos». As Humanidades levam-nos a uma exigência redobrada
na língua e nas línguas, isto é, na comunicação, relacionando saberes básicos
que, por sua vez, pressupõem competências, com instrumentos para compreender e
produzir textos de diversa índole, com património escrito pelas gerações que
nos antecederam e com a tomada de consciência da dignidade e das limitações da
humanidade. Aguiar e Silva assume, com coragem, essa atitude, até porque «são
os textos, nas suas formas e nos seus sentidos, que consubstanciam a
literatura». Não é de mais repetir que a língua portuguesa é como «a mais
esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal», não podendo
compreender-se sem ela a nossa identidade e a nossa diferença.
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