sexta-feira, 31 de maio de 2013

Preguiças por Helder Macedo


 
 
 Quando eu tinha 11 ou 12 anos (ainda estava em Lourenço Marques) ofereceram-me um livro intitulado História de Portugal para os Meninos Preguiçosos Fiquei ofendidíssimo. Eu preguiçoso?! Praia de manhã, matine no Scala, futebol ao fim da tarde, uns versinhos precoces às escondidas, o pôr-do-sol na baía… O quê queriam ainda mais?
O autor era um notável talento desperdiçado, como vim a perceber tempo depois em Lisboa. Ele a fazer uns preguiçosos filmes publicitários: “Ó Isabel olha o relógio!” (mas a boazona da Isabel entrou sem receio na piscina porque o relógio era à prova de água). Por essas e por outras tornou-se no que hoje em dia se chamaria uma celebridade. Conhecido por ser conhecido. Contavam-se histórias a seu respeito, algumas provavelmente exageradas, mas nem por isso menos reveladoras. Por exemplo que um dia perseguiu de quarto em quarto, com desnudada urgência em riste uma virtuosa criadita que se atirou da janela e ficou estatelada no saguão. Ao que ele, debruçando-se, teria comentado: “Caíste minha pomba, caíste pensavas que lá por seres virgem podias voar.”Não deve ser verdade, mas a moral da história é o que importa aqui: a virgindade não dá asas.
Vem isto a propósito desta recente voga de simplificações dos Lusíadas para meninos e não tão meninos, por ventura nem sequer preguiçosos.
Que me fez pensar nos malefícios da virgindade. Sou todo a favor de facilitar acessos, tanto assim que aceitei participar, há coisa de sete anos, nos chamados Grandes Portugueses e até arranquei para Camões o …quinto lugar. Também acho perfeitamente respeitável que Gonçalo M. Tavares tenha pedido boleia ao James Joyce (que levou décadas a dessacralizar a Odisseia numa contemporaneidade irlandesa) para mais prontamente dessacralizar. Os Lusíadas na sua contemporaneidade portuguesa. E sobretudo achei ótimo que em 1972, em Moçambique e plena Guerra colonial, o pintor António Quadros, aliás o poeta João Pedro Grabato Dias, aliás Frey Ioannes Garabatus, o camoniano pseudo-autor das Qvybyrycas, tenha usado os Lusíadas para transformar a celebração épica do império português numa representação irónica do fim dos impérios. Com uma não menos irónica introdução erudita de Jorge de Sena e uma salutar epígrafe didáctica: “Cada um faz a homenagem que pode”. Porém acho péssimos que andem por aí a pedir boleia ao Fernando Pessoa para ensinar Camões nos liceus e universidades, como já disse e aproveito para dizer outra vez.
Mas sim é verdade, cada um faz a homenagem que pode. E também só se pode ensinar o que se sabe. O problema é mesmo esse. Quando se confunde acessibilidade com banalização. É em todo o caso sintomático de um salutar desejo de trazer novos leitores para os Lusíadas que duas das nossas mais ubíquas personalidades culturais tenham recentemente produzido interpretações didácticas do poema. Refiro-me a Os Lusíadas para gente nova, de Vasco Graça Moura (Gradiva, 2012), e à Versão de Os Lusíadas por José Luís Peixoto (em publicação pela revista Visão).
 
 
Vasco Graça Moura propõe à” gente nova” uns Lusíadas em que incorpora estrofes total ou parcialmente suas no texto de Camões, para desse modo o resumir, ou comentá-lo, ou torná-lo menos obscuro. Também omite passagens do poema que seriam retrospectivamente desconfortáveis, por exemplo os incentivos à invasão do Norte de África que como sabemos e então não se podia saber, quando implementada resultou na morte de Dom Sebastião e na anexação de Portugal à Espanha. Nas mãos de alguém menos hábil, justapor versos seus aos versos de Camões seria um exercício megalómano de resultados potencialmente grotescos, Mas Vasco Graça Moura é, por um lado, um mestre do pastiche poético e, por outro, um conhecedor profundo da poesia de Camões. De modo que, se a gente nova achar mais fácil ler estes partilhados Lusíadas, antes do que nada. O livro terá cumprido o seu propósito. O mesmo não se pode dizer da Versão de José Luís Peixoto.
Enquanto Vasco Graça Moura é consensualmente reconhecido como uma personalidade representativa do establishment cultural português, José Luís Peixoto, várias décadas mais novo, é um festejado romancista que tem sido associado a uma imagem de dissidência populista. Teria portanto sido interessante encontrar por seu intermédio uns Lusíadas que saíssem das leituras escolares convencionais.
O que saiu foi um Camões mal ensinado e mal aprendido que resulta numa espécie de crónica de banalidades disfarçadas em preguiçosas pós-modernices de piscadela de olho ao leitor. Exemplo: o Concílio dos Deuses. Que começa assim: “Como numa reunião de condomínio ou num conselho de ministros, Júpiter lançou-se num longo discurso que trazia já preparado de casa. “ E que termina: “Sem apito, Júpiter apitou o final da partida. Sem martelo, pumba, declarou encerrada a reunião.”No fim do texto que vi na internet vinha um “GOSTO MUITO”            de uma senhora chamada Isabel (olha o relógio!) que se depreende que é professora porque acrescenta: “vou usar os seus Lusíadas nas aulas de Português”. E se calhar vai mesmo. Malefícios da virgindade. Com Os Lusíadas a saltarem da janela e a ficarem da janela e a ficarem estatelados no chão.
Helder Macedo, in JL de 15 a 28 de Maio de 2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Cuidado com a Língua!

Mia Couto vence Prémio Literário Camões




O vencedor do prémio literário mais importante da criação literária da língua portuguesa é o escritor moçambicano autor de livros como Raiz de Orvalho, Terra Sonâmbula e A Confissão da Leoa. É o segundo autor de Moçambique a ser distinguido, depois de José Craveirinha em 1991.
A obra de Mia Couto, “inicialmente, foi muito valorizada pela criação e inovação verbal, mas tem tido uma cada vez maior solidez na estrutura narrativa e capacidade de transportar para a escrita a oralidade”, acrescentou Vasconcelos. Além disso, conseguiu “passar do local para o global”, numa produção que já conta 30 livros, que tem extravasado as suas fronteiras nacionais e tem “tido um grande reconhecimento da crítica”. Os seus livros estão, de resto, traduzidos em duas dezenas de línguas.
Do júri, que se reuniu durante a tarde desta segunda-feira no Palácio Gustavo Capanema, sede do Centro Internacional do Livro e da Biblioteca Nacional, fizeram também parte, do lado de Portugal, a professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa Clara Crabbé Rocha (filha de Miguel Torga, o primeiro galardoado com o Prémio Camões, em 1989), os brasileiros Alcir Pécora, crítico e professor da Universidade de Campinas, e Alberto da Costa e Silva, embaixador e membro da Academia Brasileira de Letras, o escritor e professor universitário moçambicano João Paulo Borges Coelho e o escritor angolano José Eduardo Agualusa.
Também em declaração à Lusa, Mia Couto disse-se "surpreendido e muito feliz" por ter sido distinguido com o 25º. Prémio Camões, num dia que, revelou, não lhe estava a correr de feição. “Recebi a notícia há meia hora, num telefonema que me fizeram do Brasil. Logo hoje, que é um daqueles dias em que a gente pensa: vou jantar, vou deitar-me e quero me apagar do mundo. De repente, apareceu esta chamada telefónica e, obviamente, fiquei muito feliz”, comentou o escritor, sem adiantar as razões.
O editor português de Mia Couto, Zeferino Coelho (Caminho), ficou também “contentíssimo” quando soube da distinção. “Já há muitos anos esperava que lhe dessem o Prémio Camões, finalmente veio”, disse ao PÚBLICO, lembrando que passam agora 30 anos sobre a edição do primeiro livro de Mia Couto em Moçambique, Raiz de Orvalho.
O escritor não virá à Feira do Livro de Lisboa, actualmente a decorrer no Parque Eduardo VII, porque esteve na Feira do Livro de Bogotá, depois foi para o Canadá e só recentemente voltou a Maputo. Zeferino Coelho espera que o autor regresse a Portugal na rentrée, em Setembro ou Outubro.
No entanto esta distinção não o vai desviar do seu novo romance, sobre Gungunhana, personagem histórico de Moçambique. "O prémio não me desvia. Estou a escrever uma coisa que já vai há algum tempo, um ano, mais ou menos, e é sobre um personagem histórico da nossa resistência nacionalista, digamos assim, o Gungunhana, que foi preso pelo Mouzinho de Albuquerque, depois foi reconduzido para Portugal e acabou por morrer nos Açores”, disse  Mia Couto, à agência Lusa. “Há naquela figura uma espécie de tragédia à volta desse herói, que foi mais inventado do que real, e que me apetece retratar”, sublinhou.
in Público  de 27-5-2013
 
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terça-feira, 28 de maio de 2013

Acordo Ortográfico, mais um artigo de opinião


              Acordo Ortográfico: Um homem mordeu um cão      

 

Não cabe aqui o meu espanto por ver reacesa a querela do Acordo Ortográfico (AO). Aumenta esse espanto quando pessoas que estimo e intelectualmente respeito enfileiram numa fúria contestaria baseada em argumentos parciais, desinformados e não raro tendenciosos.
            Para nos entendermos, lembro factos. O AO foi firmado em 1990 pelos então 7 países de língua oficial portuguesa; em 2004, Timor-Leste aderiu a ele. Que eu saiba, nenhum dos países foi coagido. De então para cá, a esmagadora maioria desses países tomou decisões jurídico-políticas de ratificação, o ultimo dos quais (Moçambique) em Junho do ano passado. Outros factos: no nosso sistema educativo o AO esta em progressiva adoção, sem notícias de estragos de monta; na comunicação social está generalizada, salvo escassas exceções que confirmam a regra, a utilização do AO. Alguns números: em meados de 2012, dos dez jornais e revistas portugueses de maior circulação, oito utilizavam o AO; os dois que o não faziam ocupavam a antepenúltima posição, nesse índice de circulação. No caso das televisões, todas as de sinal aberto e praticamente todas as do cabo seguem o AO. E já não falo em documentos oficiais no” Diário da República”, em incontestáveis sites ou o facto de estarem publicados ou em vias de o ser os vocabulários ortográficos que alguns reclamavam com esgazeada ansiedade.
É isto significativo para desdramatizar (porque o que está em causa é uma dramatização) a questão do AO? Claro que sim. Aquilo que contribui para a estabilização possível do idioma e para a naturalização das suas mudanças é o uso disseminado, não as sensibilidades de quem tem acesso a caixas de ressonância disponíveis. O AO tem incongruências a reparar? Claro que tem. A grande notícia é esta: a nossa língua, já antes do AO de 1990, registava incongruências, no plano da grafia e noutros também. E as diferenças entre variantes nacionais existem noutros grandes idiomas (no inglês, no espanhol ou no francês) espalhados pelo mundo, os tais que não têm um acordo ortográfico, argumento que já tive oportunidade de desmontar. Essas são as limitações da congénita imperfeição que afeta produtos humanos como as línguas que falamos e escrevemos. Para atalhar a imperfeição regulamos a língua até onde isso é possível, sem que tal signifique mutilar singularidades. A ortografia é um dos domínios onde isso é feito, sempre (o passado mostra-o bem) com resistências, porque aí a mudança atinge a epiderme da linga (é uma metáfora, claro). Voltámos a isto porque o Brasil decidiu prolongar por algum tempo o período de transição para a vigência obrigatória do AO, mas manteve-o em vigor. Só isso.
            O que lemos em artigos inflamados? Que o Brasil suspendeu, recuou, cancelou e outras coisas semelhantes. Isto é sério? Por mim, pude testemunhar, durante um ano em que vivi no Brasil, que o AO está bem e recomenda-se por aquelas terras. Foi generalizadamente adotado, não suscitou histerias, ninguém rasgou as vestes. Falta Angola, claro, esse país que alguns agora olham como um modelo de sensata democracia cultural. Pois bem: Angola acabará por aderir ao AO, talvez a recente decisão brasileira tenha a ver com isso mesmo, coisa em que deveríamos pensar, se em Portugal houvesse pensamento estratégico sobre a língua, em vez dos gritos lancinantes que só o fundamentalismo linguístico explica. Mas é assim que por cá se faz: se um magistrado não gosta do AO ou se uma mãe decide que o filhinho fica traumatizado por escrever ativar, é disso que se faz a notícia. Decididamente: um homem mordeu um cão.
 

            Carlos Reis, in  Jornal Expreso, Fevereiro de 2013

PATRIMÓNIO, LÍNGUA E HUMANIDADES…por Guilherme d’Oliveira Martins


 

Participei, há dias, em Santander, no inesquecível Palácio da Madalena, a convite de Josemaria Ballester, numa extraordinária reflexão sobre o novo conceito de Património Cultural, que procura acabar com a velha oposição entre património e criação contemporânea e dá lugar à ligação entre pedras vivas e pedras mortas, entre património, herança, memória e criação. Assim, ganha sentido a protecção do património material e imaterial e o tema das Humanidades torna-se crucial, como salvaguarda do que é comum e do que diferencia. E, com muita saudade, lembrámos a memória do mestre (que o foi de muitos de nós), que nos lançou no estudo e aprofundamento de todos estes difíceis temas – refiro-me a Pepin Vidal-Beneyto. Ora, falar de património imaterial, é referir, como essencial, a prioridade atribuída à protecção e salvaguarda das línguas e da comunicação interpessoal. Só através do uso correcto da língua, poderemos chegar aos nossos interlocutores. Daí que a defesa da língua seja um acto elementar de respeito e de cidadania. Além do património das pedras vivas, da arquitectura e da arqueologia, dos bens construídos e dos vestígios materiais, temos de cultivar as tradições e os costumes, o saber fazer e o saber saber – e as línguas têm aí um papel crucial.


Num momento em que a crise das Humanidades encontra as suas raízes na «crise do conhecimento da língua materna, que condiciona a prática da leitura e a compreensão dos textos literários, históricos, filosóficos etc.», torna-se fundamental tirar as devidas ilações desta afirmação da autoria do Prof. Vítor Aguiar e Silva. De facto, «todas as Humanidades se fundam no conhecimento e na prática da língua e sobretudo na leitura e na interpretação de textos, em particular de textos literários». Neste sentido, importa falar entre as grandes reformas urgentes, a efectuar na educação: «melhorar, fortalecer e enriquecer o conhecimento da língua portuguesa». Não se trata, porém, de uma proposta ao lado de tantas outras, mas de uma prioridade fundamental, centrada não em «tecnicismos logocráticos e abstrusos», mas no incentivo da leitura dos textos, na prática da expressão oral e escrita, na interpretação e numa especialíssima atenção aos textos literários de diferentes épocas e géneros. Não há nitidez de espírito sem ideias claras e distintas, não há conhecimento sem o contacto com os autores e os textos originais. A pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem na exposição, a indigência das ideias – tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença que atingem as Humanidades e a literatura. As cabeças bem feitas, de que falava Montaigne, e Edgar Morin recorda, exigem abertura de espírito, diálogo entre saberes, capacidade de conhecer e compreender.

A língua portuguesa é vista ainda por Vítor Aguiar e Silva como «a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade. No entanto, isso obriga-nos a especiais responsabilidades no bom domínio do português e na sua defesa e protecção. Mas a responsabilidade essencial centra-se na valorização da cultura e da ciência, como faces da mesma moeda. Lembremo-nos de Pico della Mirandola, para quem as Humanidades iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico. Nada pode ser estranho às Humanidades. E se se nota, presentemente, descrença relativamente a essa opção, no ensino e na escolha de uma profissão, a verdade é que não estamos a falar de um domínio fechado e cabisbaixo, mas a procurar novas perspectivas, susceptíveis de abrir novas oportunidades. Afinal, não podemos esquecer que a grave crise financeira que vivemos deveu-se fundamentalmente à desvalorização da capacidade de criar e de inovar, nas duas últimas décadas. Ora, se a cultura e um novo espírito, capazes de acolher e aprofundar as Humanidades, entrarem na ordem do dia, isso significará que se dará uma especial ênfase ao seguinte: «o discurso das Humanidades tem de ser sempre (…) a defesa intransigente contra os dogmáticos, os tiranos e os espoliadores da liberdade e da dignidade do homem, no plano das ideias e dos valores, e no plano das práticas concretas». Veja-se, pois, que a apologia das Humanidades nada tem a ver com uma referência datada ou retrospectiva. Trata-se de um apelo ao universalismo do diálogo entre saberes.

No entanto, este momentoso problema não se limita às considerações teóricas e abstractas que, sobre ele, pareceriam mais fáceis. O facto é que o valor da língua e das Humanidades tem repercussões económicas e sociais. Num estudo recente do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, as indústrias e os serviços em que a língua portuguesa é um elemento chave representam 17% do Produto Interno Bruto (PIB) de Portugal. Com efeito, esse estudo sobre “O Valor Económico da Língua”, encomendado pelo Instituto Camões a uma equipa de investigadores daquela instituição revela que esse valor é superior ao que normalmente é referido, por exemplo para a língua castelhana (15%), “em resultado da maior terciarização da economia portuguesa em relação à espanhola. De qualquer modo, podemos afirmar, sem grande margem de erro, que há uma equivalência, devendo salientar-se que a língua constitui um elemento de crescente importância quando falamos de criação económica. E isto é tanto mais evidente, quanto é certo que os sectores criativos nas economias modernas têm cada vez mais em consideração a língua e a cultura. A tudo isto não é alheio o facto de o português ser a terceira língua europeia com maior projecção mundial (a seguir ao inglês e ao espanhol) e de haver uma previsão de aumento muito significativo de falantes na área do português. Aliás, só as principais línguas da China e da Índia se podem comparar em número de falantes com as três línguas europeias mais faladas, ainda que só estas tenham difusão universal. Naturalmente, o que acabamos de dizer corresponde a uma crescente responsabilidade para as economias da língua portuguesa, uma vez que se exige uma maior qualidade nas aprendizagens e uma maior valorização da educação e da formação. De facto, o que distingue uma sociedade desenvolvida duma sociedade atrasada, nos dias de hoje, é a capacidade de aprender, e isso é especialmente pertinente quando falamos de tudo quanto se relaciona com o uso da língua. No fundo, falar de valor económico é referir o valor cultural – afirmando que a língua é um factor social indispensável para a coesão, para a confiança e para a auto-estima das sociedades.

Percebe-se que o Prof. Aguiar e Silva no seu livro «As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa» (Almedina, 2010), que temos vindo a citar, insista na «elaboração das Humanidades», como «saberes sistematizados que ensinem o homem a falar, a discorrer, a interpretar, a argumentar, a ponderar os valores, a tomar decisões na esfera política, a representar poética e simbolicamente as suas acções, as suas virtudes, as suas misérias e os seus sonhos». As Humanidades levam-nos a uma exigência redobrada na língua e nas línguas, isto é, na comunicação, relacionando saberes básicos que, por sua vez, pressupõem competências, com instrumentos para compreender e produzir textos de diversa índole, com património escrito pelas gerações que nos antecederam e com a tomada de consciência da dignidade e das limitações da humanidade. Aguiar e Silva assume, com coragem, essa atitude, até porque «são os textos, nas suas formas e nos seus sentidos, que consubstanciam a literatura». Não é de mais repetir que a língua portuguesa é como «a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal», não podendo compreender-se sem ela a nossa identidade e a nossa diferença.

 in Observatório da Língua

Teolinda Gersão faz uma declaração de amor à Língua Portuguesa


Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.

11-06-2012

 

Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

 

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

 No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

 No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

 No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?



 A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

 Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

 E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

 E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

 João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).

 

Teolinda Gersão, junho, 2012
in Observatório da Língua Portuguesa