sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O Português e o regresso dos textos ?difíceis? José Augusto Cardoso Bernardes, professor da Faculdade de Letras de Coimbra

O Português e o regresso dos textos ?difíceis?
quarta-feira, 27-11-2013
Diário de Notícias

José Augusto Cardoso Bernardes, professor da Faculdade de Letras de Coimbra

Mais do que qualquer outra área escolar, o Português envolve uma considerável margem de impacto cívico. Não se estranha, por isso, que o anúncio da entrada em vigor de novos programas para o ensino secundário suscite sempre alguma controvérsia. Para mais, neste caso, o Programa é bastante diferente daquele que esteve em vigor nos últimos 15 anos. Deixando agora de lado algumas dessas diferenças (a maneira como a Gramática ou a oralidade são contempladas constituem apenas dois exemplos que ilustram uma assinalável evolução), detenho-me apenas no reforço da presença da "educação literária". Esta expressão, que tinha surgido já nas metas curriculares do ensino básico, consolida-se agora, como domínio autónomo da disciplina de Português, também no Secundário. Já se ouviram alguns protestos: segundo os descontentes, o novo Programa seria mais de Literatura do que de Língua. E teria ainda, pelo menos, mais dois defeitos: é demasiado extenso e elitista.

Não concordo com nenhuma destas críticas e explico os motivos da minha posição. Diga-se, em primeiro lugar, que a maior presença de textos literários não prejudica o ensino da Língua. Pelo contrário: a leitura continuada desse tipo de enunciados permite alcançar objetivos de natureza linguística que se não atingem de outro modo. Através dos textos literários, pode exercitar-se, desde logo, a leitura expressiva e a compreensão escrita. A partir desses mesmos textos, pode-se ainda falar e escrever em registo argumentativo, combinando sensibilidade, informação e pensamento. Salvo melhor opinião, que nunca vi expressa, estes objetivos são de natureza linguística e concretizam-se melhor a partir de um soneto de Camões do que a partir de uma notícia factual.

Tão pouco me parece que a extensão do programa deva atemorizar. Por junto, ao longo dos três anos do secundário, os alunos de Português devem ler sete obras integrais (incluindo este número dois contos e duas pequenas peças de teatro). A grande maioria dos autores figura sob forma antológica: de Fernão Lopes, que consta do programa do 10.º ano, bastará escolher "excertos de dois capítulos da Crónica de D. João I"; assim como, no ano seguinte, apenas se aponta o estudo de uma poesia da Marquesa de Alorna, três poemas de Bocage e outros tantos de Antero de Quental. O que se pretende, afinal, é que o aluno exercite a sua sensibilidade a partir de textos de várias épocas (porque a Língua e a Literatura portuguesas existem desde há muitos séculos) e seja capaz de situar alguns autores à luz dessa evolução histórica. Deverá ficar a saber, por exemplo, que Fernão Mendes Pinto quase coincidiu com Camões no Oriente e que Pessoa nasceu depois de Camilo Pessanha. Nada disso lhe era recomendado como conhecimento "útil", até agora.

A acusação de elitismo é mais séria e convida a um debate demorado em torno das missões da Escola. A questão pode formular-se deste modo: deve a Escola abdicar dos textos difíceis apenas porque são difíceis? Ou deve, pelo contrário, esforçar-se por criar condições para que o contacto com esses textos (que são decisivos sob o ponto de vista cultural) sejam facultados a todos os alunos, em especial àqueles que, de outra forma, nunca chegariam a conhecê-los? O desafio maior deve ser o de encontrar um ponto de equilíbrio entre o imperativo da inclusão e o desenvolvimento da cidadania, sendo que ambas as palavras concorrem para o ideal mais nobre da escola pública: o de conceder a todos as mesmas oportunidades.

Se bem analiso a situação, os novos programas de Português (e também as metas que dele resultam) constituem um notável avanço e não um retrocesso. Reforçando o peso da Literatura, reconhecem que esta se encontrava menorizada nos programas anteriores; aceitam a importância identitária de que se reveste no contexto da cultura portuguesa, recuperam o alinhamento sadio da história literária sem cair no historicismo, preservam a centralidade dos textos no espaço letivo e fazem deles (dos textos literários e também de outros tipos de texto) via de conhecimento e de treino comunicacional.

Por muito bons que sejam, contudo, os programas não irão resolver todos os problemas da disciplina. No que diz respeito ao ensino da Literatura (prática de que alguns professores andam afastados há muitos anos) existe, desde logo, o risco do regresso, puro e simples, a métodos antigos. Seria mau se assim fosse. Os alunos não são os mesmos de há 40 anos e os programas que vão entrar em vigor não são meros decalques de propostas de outros tempos. Para evitar esse risco, impõe-se a adoção de medidas corajosas, abrangendo a Escola e as universidades. Essas parcerias podem, desde logo, conduzir à oferta de ações de formação centradas no que é necessário aprender ou reajustar; e podem dar origem ao aparecimento de textos de apoio com qualidade, evitando que o mercado seja tomado por publicações oportunistas e simplificadoras. Se assim não vier a acontecer, o regresso dos textos difíceis pode vir a tornar-se inglório e inútil. 
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