quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Sobre o Cânone Literário por Vasco Graça Moura

 Sobre o cânone literário

por VASCO GRAÇA MOURA 08 agosto 2012
 
 Poucas ideias devem ter sido tão discutidas na teoria literária moderna como a de cânone. Posto em questão devido a ressentimentos de vária ordem, como sustenta Harold Bloom, ou por razões teóricas mais ou menos ligadas à Linguística ou às ideologias, o cânone aspira a englobar uma lista de autores e de obras consideradas modelos de perfeição, seja à escala nacional, seja à escala ocidental, seja à escala universal. A sua estabilização, sempre a entender em termos flexíveis e abertos a sucessivas incorporações, supõe a passagem do tempo, a filtragem pela consciência colectiva e a inserção em coordenadas civilizacionais, a existência e funcionamento de critérios de valor identitários e estéticos, uma tradição analítica de comentários e uma história cultural, e provavelmente uma tensão dinâmica com sucessivos contra-cânones. Sem pretender entrar em discussões teóricas e sem negar que haja uma certa dose de flutuação necessária no próprio estabelecimento do cânone e dos seus contornos práticos, considerando o caso português (ou, se se preferir, o dos espaços em que se fala o português) as coisas podem resumidamente ser postas assim: deveria haver um conjunto de obras literárias escritas na nossa língua que todos teriam de conhecer. No plano do ensino, isto parece de uma evidência elementar, mas tem andado mais ou menos esquecido. Ora, reduzida às suas linhas mais simples, esta é afinal a questão do cânone literário e da sua relevância para o currículo escolar, embora esse plano, por definição, acabe por ser transcendido, pois o cânone não é propriamente uma simples ferramenta para uso do ensino, mas antes um quadro de referências indispensáveis e um complexo de elementos literários respeitante ao sistema de valores e aos interesses culturais de uma dada sociedade: incorpora uma série de modelos cuja evidência paradigmática se recorta ao longo dos sucessivos tempos históricos e se impõe à mentalidade e à sensibilidade colectivas. Na escola, a abordagem do cânone deve ser flexível e variada. Em Portugal, antigamente, havia para tal efeito excelentes instrumentos que iam dos cadernos literários da Seara Nova aos textos da editorial Comunicação e vários outros. Havia também selectas, crestomatias e antologias que apresentavam criteriosamente passagens mais ou menos extensas de obras que faziam parte do cânone. E havia, para quem estudava, a obrigação de saber dessas obras e mesmo de conhecer algumas delas na íntegra. Dos cancioneiros medievais a Fernão Lopes, de Bernardim e Gil Vicente a Sá de Miranda e Camões, de Rodrigues Lobo e Francisco Manuel de Melo a Bernardes e Vieira, de Bocage, Garrett e Herculano a Camilo, Eça, Cesário, Antero e António Nobre, isto para dar só alguns exemplos flagrantes do século XIII ao século XIX, os alunos de Português tinham de contactar com toda uma série de autores e isso só lhes fazia bem. Visitavam lugares escolhidos da grande literatura escrita na sua língua e, a partir desses paradigmas, tinham de proceder a vários tipos de análise e de interpretação, enriqueciam o seu conhecimento do léxico e da gramática, aprendiam figuras de estilo, adquiriam uma certa compreensão história e contextualizada da obra de cada autor, aperfeiçoavam grandemente o conhecimento do português como língua materna e tornavam-se capazes de utilizá-lo melhor. É por isso da maior importância que se retome o cânone literário e que este forneça uma base essencial para o desenvolvimento dos programas de português. Tanto o Ministério da Educação como o Plano Nacional de Leitura têm aqui uma tarefa de grande responsabilidade. Nunca será demais insistir em que os estudantes, se tiverem um bom domínio da língua portuguesa, ficam preparados para ler tudo o mais: bulas de medicamentos, manuais de instruções, relatórios técnicos, notícias de jornais... Ao invés, se a sua preparação for circunscrita a este tipo de textos, nunca eles conseguirão ler capazmente um grande escritor. E se não forem capazes de ler capazmente um grande escritor, acabarão por não ser capazes de mais nada. O processo de contacto com as obras dos grandes autores da nossa língua carece de ser urgentemente reabilitado nas escolas, com critério e exigência.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.


Texto recolhido do Diário de Notícias em linha no dia 4/9/2013

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